quarta-feira, 13 de abril de 2011

Pronto-socorro digital

Feito de deficientes para deficientes, Blogs dão exemplo de cidadania e inclusão

Por Jéssica Branco Gonçalves




“De repente, me vejo sem saída, se tudo era ruim o pior aconteceu. E eu que reclamara tanto da vida... E agora o que faço?”. Discordando da comum visão pessimista acerca da deficiência física, os blogs da Vera, do Ricardo e do Leandro mostram que se tornar deficiente não é tão ruim assim. A fim de tentar ajudar pessoas que se encontram nessa situação, esses internautas que estão envolvidos com o universo da deficiência resolveram criar blogs que funcionam como um pronto-socorro e servem também como ferramentas de incentivo aos deficientes.
          
O que eles têm?

Por trás desses endereços: www.serlesado.com.br, www.deficienteciente.com.br e www.deficientealerta.blogspot.com, estão verdadeiros vencedores:

      Ser Lesado



O profissional autônomo Leandro Portella, de 30 anos (foto acima), mora em Araçoiaba da Serra, interior de São Paulo. Amante do mar, aos 17 anos estava mergulhando na praia de Sununga, em Ubatuba. Não viu que estava em área rasa e se acidentou, tornando-se assim um tetraplégico.

O tempo passou e ele chegou à seguinte conclusão: “Quem sou eu? Feliz, tenho tudo que preciso”. Desde então, despertou em si um forte desejo de ajudar outras pessoas que se encontram como ele, os lesados medulares.

Alguns poderiam achar que ele era “lesado”, contudo, ele tinha a consciência de estar vivo. Como qualquer um que tem acesso à internet, resolveu criar um blog. Foi aí que surgiu a ideia do Ser Lesado, com o duplo significado de ser (estar ou ser vivo) e lesado (aquele que sofre de lesão medular ou apenas um doido).

A iniciativa só foi possível porque, anteriormente, Leandro descobriu um software que lhe deu independência para navegar na internet, o “motrix” (comando de voz). Assim, ele pôde “escrever” novamente. No fim de 2009, em dezembro, em pleno clima natalino, tempo de esperança e coincidentemente mês do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência Física*, Leandro criou o blog. Passou a distribuir informações importantes e, ao mesmo tempo, conquistou uma boa fonte de renda.

O blog funcionou tão bem que até março último já teve mais de 80 mil acessos e média de 350 visitantes por dia. Adquiriu assim o respeito dos internautas.
       
Diariamente, Leandro abastece o Ser Lesado com informações de todo tipo, apesar de sempre envolver de alguma forma o assunto lesão medular. Ele realiza pesquisas em sites e como se fosse um jornalista filtra as informações para dar credibilidade ao blog.


       Deficiente Ciente



 Vera Lúcia Garcia (foto acima), de 41 anos, vice-diretora educacional e pós-graduada em gestão escolar, é moradora de São Paulo. Devido a um acidente durante a infância teve o braço superior direito amputado. Tornou- se blogueira, com a profissão de educadora no sangue: tornar comum a informação, comunicar. Por isso, não estava satisfeita em apenas educar em um estabelecimento de ensino, queria mais, com o propósito de que os deficientes físicos devem estar cientes sobre seus direitos e deveres. Vera julga necessária a busca por novos conhecimentos e a troca de experiências. Foi aí que decidiu, junto com o seu ex-namorado, criar o blog Deficiente Ciente.

Um dos seus principais objetivos era conscientizar e sensibilizar as pessoas que não têm deficiência. Portanto, transferiu todos esses ideais para o seu blog: “Queria mostrar através de vários exemplos positivos que é possível ser feliz, mesmo sendo uma PcD ( sigla que significa Pessoa com Deficiência).  Penso que as pessoas sem deficiência precisam olhar para nós sob o ângulo da nossa eficiência, nossas capacidades e habilidades. E, assim, não enxergar a deficiência como uma doença crônica, um peso ou um problema”.

Além de aceitar sugestões de notícias dos usuários, Vera faz pesquisas na internet ou em jornais, revistas e artigos científicos. O blog é atualizado de segunda a sexta-feira e também veicula artigos que ela escreve sobre deficiência física.  Apesar de as notícias estarem ligadas à questão da deficiência, existe ali uma variedade muito grande de informações, como matérias sobre acessibilidade, mercado de trabalho, histórias de superação, esporte, sexualidade, entre outros assuntos. O blog possui uma média mensal de 23 mil acessos e também funciona como fonte de renda.

Seja via Orkut, Facebook, Twitter ou por comentários no blog, os leitores contam a Vera que suas informações têm ajudado muitos amigos e conhecidos. É o caso do estudante Ricardo Evandro Ribeiro, que tem paralisia cerebral e por isso foi impedido de estudar na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Após a divulgação no blog Deficiente Ciente, o caso repercutiu em outros sites e blogs até mesmo de Portugal. No post colocado por Vera existem outros links que relatam o caso do início ao fim. Contente, ela afirma: “O resultado foi uma grande vitória para todos”. Você pode acompanhar o caso através desse link: http://www.deficienteciente.com.br/2010/08/discriminacao-e-preconceito-na.html

*Dia internacional das pessoas com deficiência física: A 37ª Sessão Plenária Especial sobre Deficiência da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, realizada em 14 de outubro de 1992, em comemoração ao término da Década, adotou o dia 3 de dezembro como Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, por meio da resolução A/RES/47/3. Com este ato, a Assembléia considera que ainda falta muito para se resolver os problemas dos deficientes, que não pode ser deixado de lado pelas Nações Unidas.
A data escolhida coincide com o dia da adoção do Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência pela Assembléia Geral da ONU, em 1982. As entidades mundiais da área esperam que com a criação do Dia Internacional todos os países passem a comemorar a data, gerando conscientização, compromisso e ações que transformem a situação dos deficientes no mundo. O sucesso da iniciativa vai depender diretamente do envolvimento da comunidade de portadores de deficiência que devem estabelecer estratégias para manter o tema em evidência.
Fonte: http://www.cedipod.org.br/Dia3.htm

*Sustentabilidade é a habilidade, no sentido de capacidade, de sustentar ou suportar uma ou mais condições exibidas por algo ou alguém. É uma característica ou condição de um processo ou de um sistema que permite a sua permanência, em certo nível, por um determinado prazo. Em anos recentes, o conceito tornou-se um princípio, segundo o qual o uso dos recursos naturais para a satisfação de necessidades presentes não pode comprometer a satisfação das necessidades das gerações futuras, o que requereu a vinculação da sustentabilidade no longo prazo, um "longo prazo" de termo indefinido, em princípio

"Agora sou mais capaz de detectar a felicidade"

Por Thaís Moraes
O menino descendente de dinamarqueses seguiu a tradição da família e se tornou atleta desde cedo. Ganhou por duas vezes medalhas de bronze. Uma nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1998, e outra em Atlanta, em 1996. Esse é o velejador Lars Schmidt Grael, de 47 anos. Em setembro de 1998, o amor pela vela foi ameaçado por um acidente em Vitória, no Espírito Santo, quando teve a perna direita amputada por uma lancha. Em entrevista por e-mail, o velejador conta como foi a sua recuperação e diz que agora enxerga a felicidade mais facilmente.
Reaprender — O senhor sempre está usando muletas e não uma prótese. Por quê? É preferência ou recomendação médica?
Lars Grael — É uma preferência, já que o meu coto é muito curto e o meu desempenho com prótese dependeria de outras cirurgias. Ainda assim, teria dificuldades em planos inclinados como escadas e rampas. Para velejar, a prótese não tem utilidade.

Reaprender — Não há como reverter a situação?
Lars Grael — Poderia ser, mas não me sentiria útil e eficiente da forma que estou.

Reaprender — Apesar disso, o senhor já usou prótese. Quanto tempo durou a preparação para que pudesse usá-la?
Lars Grael — Durou poucas semanas e tive apoio da Otto Bock [empresa de tecnologia médica presente em 36 países] de tecnologia médica e do Centro de Reabilitação Marian Weiss. Preferi as muletas.

Reaprender — Qual o tipo de prótese que o senhor usava? Era um joelho computadorizado?
Lars Grael — Era um ótimo C-Leg [prótese com joelho computadorizado que pode ser ativada por um controle remoto], da Otto Bock.

Reaprender — Depois de todos esses anos, continua a fazer fisioterapia?
Lars Grael — Tive uma fisioterapeuta maravilhosa do Albert Einstein, que é a Rosana Ravagnani. Hoje faço apenas ginástica e velejadas.

Reaprender — Depois que se recuperou do acidente, pensou em deixar de ser atleta?
Lars Grael — Pensei, mas descobri que um novo desafio se apresentava. Obter títulos na vela, mesmo com minha deficiência, tornou-se a superação maior que buscava na vida.

Reaprender — O que o motivou a continuar? No que o esporte o ajudou a adaptar a sua vida a essa nova realidade?
Lars Grael — O esporte, e no meu caso o mar, forja o caráter do cidadão. Tive como exemplo de vontade de viver atletas que passaram por situação semelhante. Descobri que poderia ser útil como inspiração para muitos outros.

Reaprender — Como o senhor vê a sua vida antes e depois do acidente?
Lars Grael — Hoje, vivo mais intensamente e com mais capacidade de detectar a felicidade.

domingo, 10 de abril de 2011

Uma questão de adaptação

Depois do desespero, angústia e dor, a terapia ocupacional surge para dar vida nova aos portadores de necessidades especiais

Por Jessika Nobre


Carnaval de 2010. Marlene Paulo Correa, de 65 anos (foto acima), estava na casa da filha assistindo na rua a banda Ouro Verde. No momento em que foi dormir sentiu uma leve dor de cabeça e se levantou para ir ao banheiro. Antes de sair do quarto, caiu no chão. Conseguiu se levantar. Quando chegou ao banheiro, caiu de novo e bateu a cabeça na pia. Estava sofrendo um derrame — ou AVC, acidente vascular cerebral.  

Como consequência, a vida de Marlene mudou drasticamente. Ela arrasta a perna esquerda e não tem força no braço esquerdo. É proibida pelos médicos de ficar sozinha e, por isso, está morando na casa de uma tia, em Santos. Não pode cozinhar, lavar e até mesmo costurar como antes fazia: “Tudo virou de cabeça para baixo, agora dependo das pessoas”. A doença da qual foi vítima é uma das que contrariam a primeira atividade que o ser humano desenvolve sozinho — a do autocuidado. Ou seja, a capacidade de resolver sem a ajuda de ninguém pequenas tarefas da vida diária, como abotoar a camisa ou a blusa ou amarrar o cadarço do sapato ou do tênis.

Quando o paciente não consegue mais fazer isso por conta própria, as técnicas da terapia ocupacional entram em ação. Uma delas é a adaptação de objetos. Dependendo do caso seria trocar o cadarço do tênis por um calçado com crepe ou a blusa de botões por uma de pressão. “Sempre há uma solução para cada problema”, diz a terapeuta ocupacional Sueli Aparecida Fukushima, profissional da área há 22 anos.

Antes de qualquer conclusão sobre o paciente, a terapeuta faz uma anamnese. Trata-se de uma entrevista para investigar e buscar dados do indivíduo, analisando o que ele precisa desenvolver a fim de eliminar o problema do qual é vítima. A entrevista se estende depois para a avaliação funcional. Nessa fase, faz perguntas para descobrir como está a memória do paciente. Só depois dessa etapa é que começam as atividades. Muitas vezes o terapeuta precisa ir à casa do paciente para verificar o que precisa ser transformado e facilitado. Neste momento, entram em cena as adaptações, elaboradas de acordo com as necessidades de cada um. “O profissional pode adaptar uma colher para que o paciente a segure, fazer um ajuste na escova de cabelo ou aplicar um gancho no zíper da calça para que ele possa fechá-lo sozinho. Assim, o doente readquire a liberdade de resolver a sua própria dificuldade sem que alguém precise fazer isso por ele”, explica.

As atividades da vida prática como cozinhar e cuidar da casa também fazem parte do trabalho terapêutico. Mesmo com as adaptações para facilitar a vida do paciente naquele momento é importante observar se ele tem a possibilidade de esticar o cotovelo. Mesmo que não use a mão para fixar qualquer coisa, o terapeuta vai trabalhar com exercícios para tentar melhorar a flexão do cotovelo. Sueli Aparecida diz que é dever do terapeuta analisar tais possibilidades para que o indivíduo não dependa exclusivamente das adaptações.

No tratamento não existe uma fórmula indicando o que trabalhar. As atividades são desencadeadas sob medida, conforme as necessidades do indivíduo. Podem ser jogos de quebra-cabeça e objetos utilizados diariamente como a tábua de carne e a escova de cabelo, todos adaptados. Ou ainda atividades artísticas. Há seis meses na terapia ocupacional, Marlene já sentiu diferença. Hoje, já pode escovar os dentes e se vestir sozinha. Puxa menos a perna esquerda e já mantém o equilíbrio. Aluna da Casa da Visão, participa ainda de oficinas de arte. Produz pinturas em tecido com copos plásticos, que são transformados em flores. Atividades como essas não exigem tanto a coordenação motora para o desenvolvimento do trabalho, mas têm grande efeito de recuperação.

Marlene faz também terapias com psicólogo, pois enfrenta uma depressão e toma remédios para controlar os transtornos psicológicos. O cigarro foi um grande colaborador para o seu drama, pois é fumante desde os 18 anos. Só parou depois de sofrer o derrame. Por causa da depressão, perdeu dez quilos após a doença. A sua esperança é que as coisas voltem a ser como eram antes. Ela ainda não aceitou o AVC: “Queria deitar hoje e amanhecer boa no dia seguinte. Este é o meu maior sonho”.

A terapia ocupacional surge sempre como esperança para o portador de necessidades especiais. Sueli Aparecida recorda de um ex-paciente com hanseníase. “Ele me disse um dia: ‘O que mais dói é que não consigo sentir a pele da minha mulher. Quando faço carinho no rosto dela não o sinto mais’. Isso me emociona até hoje”.

Crianças e brincadeiras — Segundo o terapeuta ocupacional Jean Ricardo Sampaio, a especialidade da terapia é a análise. Toda ocupação independente do déficit motor, sensorial ou intelectual do paciente deve ser analisada para adaptação ou facilitação. Terapeuta do Centro de Reabilitação Casa da Esperança, a maioria dos pacientes que atende são crianças. Para desenvolver a terapia ocupacional com elas, Sampaio desenvolve atividades com brincadeiras.

Segundo ele, o mais importante é que elas não percebem que estão aprendendo algo. Sampaio explica que a faixa etária de zero a 24 anos é o marco de desenvolvimento do ser humano. É quando as percepções, funções e habilidades estão se desenvolvendo. Já no caso da criança com deficiência, dependendo da lesão, comprometimento motor ou intelectual, o terapeuta deve interferir e sugerir atividades.

As crianças com deficiência têm o marco de desenvolvimento atrasado, por isso precisam ser estimuladas. No trabalho infantil ele estuda o brincar e o aplica nas terapias. “O brincar por si só estimula a criança”, diz Sampaio. As brincadeiras são direcionadas para cada faixa etária. Crianças de 4 anos, por exemplo, estão na fase do faz de conta e aprendem a dividir o brinquedo com outras crianças. Cabe ao terapeuta incentivar essas ações.

É automático as pessoas usarem os diminutivos como “coitadinho” quando se referem às crianças deficientes. Sampaio explica que o terapeuta tem o papel de educar os pais, ensiná-los a conversar com o filho e também experimentar vivências com ele: “A crença de que a criança deficiente não tem capacidade é falsa, pois não sabemos o que esta criança pode fazer, mesmo com as suas dificuldades. De repente, ela faz uma leitura somente com os olhos. No momento em que chega a letra com a qual quer montar a palavra, ela pisca”, explica o terapeuta.

O terapeuta analisa a situação presente, a fim de prevenir e facilitar. Os exercícios aprendidos e praticados nas terapias também devem ser realizados em casa, pois o tempo utilizado nas aulas não é o bastante para a rápida recuperação do paciente. Geralmente, as terapias ocupacionais ocorrem duas vezes na semana, uma ou duas horas por aula. Se o paciente não praticar os exercícios em casa não obterá bons resultados. Nesse momento, a presença da família é muito importante.

A terapia ocupacional - Nesta terapia não existe um tipo de atividade específica para os pacientes, mas sempre deverão ser voltadas para as mãos e braços. No atendimento, o terapeuta deverá fazer uma análise do portador de necessidades especiais para identificar o que ele precisa. Somente após essa análise ele poderá saber o que realmente é necessário ser trabalhado com o deficiente.



Os terapeutas participam da vida do deficiente, pois precisam adaptar suas necessidades. Eles estarão sempre procurando uma nova forma de ensinar a pentear o cabelo, escovar os dentes, dirigir e até mesmo trabalhar. Mesmo achando que nunca mais poderá abotoar o zíper da sua calça, o terapeuta estudará um jeito de você fazer sozinho esta atividade.
Se o paciente não tem condições de ir até o terapeuta, o profissional deverá visitá-lo e desenvolver todas as atividades necessárias para o tratamento terapêutico. Nas aulas o profissional poderá utilizar os objetos de uma casa, pois a intenção é que o indivíduo possa efetuar as atividades básicas para a sua vida. Ou fazer uso de cones, bolas, objetos de sensibilidade entre outros (foto acima).

Todas as atividades devem ser feitas com atenção, o profissional devem estar atentos a todos os movimentos do paciente, para que ele não os faça de forma errada e assim piore a sua coordenação motora ou até mesmo dificulte uma possível recuperação deste indivíduo. 

Driblando a falta de acessibilidade

As dificuldades que os cadeirantes enfrentam todos os dias, em uma cidade que torna suas vidas mais difíceis de serem vividas

Por Karina Carneiro



Todas as vezes que Lívia Maria Fernandes Luiz, de 20 anos, coloca as rodas da cadeira (foto acima) para fora do apartamento térreo, com a ajuda da avó, enfrenta problemas. Ela é portadora de mielominigoceli hidrocefalia. O edifício onde mora, no bairro Campo Grande, em Santos, não tem escadaria adaptada para pessoas portadoras de deficiência. Portanto, é obrigada a sair pelo portão da garagem. Como o taxi adaptado – uma Doblô Fiat sem dois dos três bancos da parte de trás do carro — não pode levá-la ao mercado, o jeito é ir fazer as compras dos ovos de Páscoa com a tia Edna Fernandes Quaresma guiando-a.

Ao sair do edifício as rodas da cadeira entram em buracos bem em frente ao portão. A alegria transparente de cinco minutos atrás dá lugar ao receio da queda. O passeio pode terminar ao mais simples movimento em falso. Daquele momento em diante, a avó Leonilda Coutinho Fernandes transmite a responsabilidade de guiá-la até Edna, que durante todo o percurso auxilia na direção da cadeira.

Apesar de morar na Rua Pedro Américo, a quatro quarteirões de distância do hipermercado, as dificuldades que enfrenta são inúmeras. Tudo começa quando Lívia Maria chega à esquina da rua Pedro Américo com a Avenida Bernardino de Campos (Canal 2). Quando tenta atravessar a rua para seguir em direção à avenida, é impedida de fazer o trajeto pela calçada, já que esta não tem uma rampa adaptada. Ao atravessar a avenida, não consegue utilizar a rampa instalada no local pela Prefeitura, pois são íngremes demais. A única solução encontrada pela garota e pela tia é atravessar o pontilhão pelo meio da rua, no meio de carros, motos e bicicletas. Os motoristas que percebem a situação diminuem a velocidade enquanto a travessia é completada. Mas nada que transmita uma grande segurança. Afinal, o risco da queda é maior. “Em Santos a vida dos cadeirantes é bem difícil, isso se você não tiver um pouco de condições financeiras para sempre utilizar um carro adaptado”, reclama.

O preço da corrida de um veículo adaptado varia conforme o dia agendado. No período da tarde, em dias de semana, sai R$ 60,00. Aos fins de semana, R$ 80,00. Dentro dos valores a distância do trajeto não é considerada, funciona como uma tabela. Ao chegar no supermercado (foto abaixo), utiliza a entrada para pedestres. Se sua cadeira de rodas fosse um pouco mais larga, já não poderia entrar por ali, pois os canos que dividem a passagem possuem a distância de apenas 90 centímetros (largura mínima para a circulação de cadeirantes. A largura é a mesma da cadeira de Lívia Maria).


Ao subir as escadas rolantes, Edna precisa segurar a cadeira para não deslizar em direção contrária da esteira. Um dos motivos para a preocupação é a falta de confiança nas travas da cadeira e da rampa. Mas isso parece não ter mais problema para Lívia Maria. Ela aprendeu a encarar a situação com naturalidade.

Quando finalizam as compras, se dirigem diretamente ao caixa. Ali, outro obstáculo aparece. A garota não pode simplesmente passar pelo caixa como qualquer pessoa. Ela precisa dar a volta no supermercado e sair pela porta de entrada, pois a cadeira é maior que a largura da passagem do caixa de compras. Ao andar em sentido a entrada do supermercado, onde acaba sendo sua saída, Lívia Maria precisa dar uma volta muito maior do que deveria para encontrar a tia do lado de fora, já em frente à praça de alimentação.

De acordo com Luciano Marques, responsável pela da Coordenadoria de Defesa de Política para as Pessoas Portadoras de Deficiências, a largura mínima que qualquer corredor precisa ter é de no mínimo 80 centímetros para que uma pessoa de cadeira de rodas possa usar. A respeito do incidente na hora de passar as compras no caixa, Marques pondera que é necessário que os caixas preferenciais tenham a distância mínima de 90 centímetros, para que a cadeira de rodas possa circular. O coordenador também levanta a seguinte questão: “As pessoas não podem ser segregadas. Sozinho ou não, todo mundo passa pelo caixa. Eu só queria entender uma coisa. Se é caixa para deficiente, porque ele não consegue circular por ali? Mas infelizmente a coordenadoria não exerce a função de fiscalização”.

O caminho de volta é o mesmo. Buracos pela maior parte do caminho, de diferentes tamanhos, impossibilitam a cadeira de rodas de andar pela calçada. Novamente a solução encontrada é andar pela rua em meio a carros, motos e bicicletas. Só que dessa vez, além de ter atenção com a garota na cadeira de rodas, Edna precisa ter cuidado também com as duas sacolas de ovos de páscoa. Lívia Maria se oferece para ajudá-la, mas a tia recusa. Pede para que ela se mantenha concentrada e equilibrada para chegarem seguras em casa. Observando a dificuldade, a repórter se oferece para ajudá-las. Quando chegam à calçada do prédio, Lívia Maria quase cai em um dos pisos que faltam ali.


Vontade de entrar no mar Como qualquer garota de 20 anos, Lívia Maria Fernandes Luiz também gosta de sair, se divertir. Mas não costuma fazer isso com frequência, já que precisa pesquisar sempre qual local é mais fácil proporciona acessibilidade e, principalmente, o transporte.

Um de seus maiores sonhos era entrar no mar (foto acima), com a água no pescoço. Ligou para a Prefeitura de Santos para se informar sobre quais eram os procedimentos necessários para usar a cadeira adaptada de praia. Foi informada que para utilizar o serviço precisaria marcar dia e hora. O tempo máximo em poderia ficar na água seria de uma hora e a água iria até a sua cintura, com a ajuda de instrutores presentes na praia do Gonzaga/Boqueirão.

A repórter testou o serviço: primeiramente ligou para a Prefeitura de Santos para obter informações. A secretária informou um número de telefone e pediu que as informações fossem esclarecidas por aquele número. Após fazer a ligação no outro telefone da Prefeitura, a telefonista não soube informar sobre as cadeiras adaptadas e solicitou que as dúvidas fossem tiradas com a atendente do Posto 3. Mais uma tentativa inválida, pois a mesma também não soube dizer nada a respeito. Foi na última tentativa em que a repórter obteve sucesso. Após ligar para a Secretaria de Esportes, obteve as informações sobre como usufruir das cadeiras. Para se retirar uma cadeira adaptada de praia em Santos, a atendente da secretaria de esportes da cidade, Simone Fernandes, conta que aos sábados e domingos os cadeirantes que quiserem aproveitar o dia na praia devem se dirigir das nove da manhã às cinco da tarde ao Canal 3, onde deverão apenas retirar as cadeiras adaptadas na companhia de um instrutor. Tentando realizar este sonho, Lívia Maria percorreu um longo passeio. 


Foi em um fim de semana do mês de janeiro último, em Bertioga. Aí realmente soube o que era entrar na água da praia. “Foi em um sábado de tarde, quando passei pela Casa da Cultura, a funcionária que trabalhava ali perguntou se queríamos usar uma cadeira adaptada para que eu pudesse entrar na água. Topei na hora”.

No dia seguinte, Lívia Maria logo pegou a cadeira de praia por cinco minutos e se encaminhou para a praia. Com a presença do monitor, pôde realizar seu sonho. “Eu não sei explicar a sensação de sentir a água no meu ombro. Talvez seja banal, mas pra mim foi uma sensação única. Só saí da praia às seis da tarde”.

Formada em design gráfico, Lívia Maria já conseguiu alguns trabalhos ligados à área como freelancer. Trabalha cerca de seis horas por dia quando recebe algum trabalho; planeja logos ou panfletos para empresas. Os trabalhos realizados, muitas vezes, são enviados por e-mail, onde acaba os desenvolvendo no computador.

Sob medida

A partir de agora, sua prótese é sua melhor amiga, e deve ser comprada sob orientação profissional

Por Thaís Moraes



Acordou no hospital. Depois de oito dias em coma, a mãe de duas meninas, uma com quatro anos e a outra com um ano e meio, sabia que, àquela altura, aos 27 anos, teria de aprender tudo outra vez. Mônica estava parada numa calçada da Zona Leste de São Paulo, no Tatuapé. Veio um carro, bateu na traseira da motocicleta e a jogou longe. Seu corpo então caiu sobre o seu tornozelo esquerdo, o que provocou uma fratura exposta. Foram 38 dias no hospital e três cirurgias. A primeira foi para a colocação do Illizarov — o aparelho conhecido como gaiola, que auxilia no tratamento desse tipo de ferimento. Infelizmente, não deu certo. Teve a perna esquerda amputada, abaixo do joelho.

Oito anos depois do acidente, a dona de casa Mônica Sotero da Silva está na Clínica de Fisioterapia da Universidade Santa Cecília para a sua primeira consulta em Santos, depois que se mudou com a família para a Praia Grande. Essa é a terceira prótese. A primeira veio com muito custo. “Depois que fui pra casa, fiz oito meses de fisioterapia. A amputação não foi bem-sucedida. Voltei para o Hospital das Clínicas para fazer outra porque o coto não foi bem feito. A cirurgia que fiz para enxertar pele, não serviu para nada”, diz.

Depois de quatro meses, com a ajuda da fisioterapia, recuperou a liberdade de movimentos. Passou a utilizar uma prótese, presente de sua fisioterapeuta. “Agradeço muito a ela, me incentivou a viver, me dava força e bronca também”, lembra. Mônica é mais um caso de jovens que tiveram a rotina e hábitos mudados devido à nova condição imposta pela vida.

Prótese O que é? É a substituição de um órgão ou parte do corpo por uma peça artificial. A prótese pode ser um recomeço, uma nova chance e até se tornar uma amiga inseparável. As primeiras próteses eram feitas de madeira — lembra do pirata da perna de pau? — couro e alumínio. Eram pesadas e não davam tanta mobilidade. Mesmo assim, representou uma nova alternativa àqueles que por acidente ou doença perderam um órgão importante para a locomoção e mobilidade.

Nem todos os amputados podem utilizar a prótese. Aqueles que têm cotos mal trabalhados cirurgicamente ou que sofreram um grande trauma no acidente não conseguem usá-la. Problemas circulatórios graves também impedem o uso da prótese. É o caso da tromboangeíte obliterante, doença que consiste na obstrução e inflamação dos vasos sanguíneos de mãos e pés. Após a amputação, o ideal é o paciente iniciar a fisioterapia para ganhar condições de utilizar a prótese, seja o membro amputado superior ou inferior.

O tempo de preparação depende de cada paciente. Cada um tem a sua hora, força de vontade e condição física. Idosos, por exemplo, demoram mais para adaptar o coto. O nível de amputação também interfere. Se a lesão for abaixo do joelho, a mobilidade é mais fácil.

As próteses de alumínio são leves e suportam pesos até 75 quilos. Acima disso, podem não durar muito e até romper. Já o aço se encontra no mesmo nível do alumínio, também é mais barato, mas com um detalhe: deixa a prótese mais pesada. O titânio é indicado para pessoas com até 130 quilos, o material também é leve, mas um pouco mais caro. A fibra de carbono aguenta bastante peso, mas o preço não é dos mais baratos.

Em crianças, a prótese é feita para que possa ser reaproveitada por um tempo, já que estão em processo de crescimento. A altura e o encaixe vão sendo modificados de acordo com a necessidade. Quando o paciente engorda ou emagrece significativamente o coto também sofre alteração. Neste caso, a prótese precisa ser ajustada. Para usar as próteses, qualquer que seja o peso, o paciente necessita de força. É como carregar um peso de ginástica em toda a caminhada. O processo envolve enfaixamento do coto, no qual são colocadas faixas para modelá-lo. Durante a fisioterapia é feito um processo de fortalecimento, não só no lado afetado, mas também no membro saudável. Já os membros superiores são trabalhados para que a muleta seja adaptada com mais facilidade. Alongamentos, exercícios de equilíbrio e coordenação são alguns dos métodos utilizados para melhorar a condição global do paciente.

Quando a amputação é no membro superior, a função da prótese é mais estética. Isso porque os movimentos são limitados. Faz-se abertura e fechamento com os quatro dedos ao mesmo tempo e o polegar, assemelhando-se a um movimento de pinça. Colocar prótese de braço também leva em consideração vários fatores. De acordo com a fisioterapeuta, se o paciente for destro ou canhoto por exemplo. Quando a amputação ocorre no lado que a pessoa mais utiliza, certamente será mais útil para auxiliar nas atividades da vida diária.


Erica Teixeira da Silva (foto acima), de 33 anos, sofreu trombose no braço esquerdo. No início, os médicos achavam que se tratava de reumatismo e deram o tratamento específico para a doença: “Eu tinha dor no braço e na mão, amortecia e perdia um pouco a cor, depois tudo voltava ao normal”. Quando a doença foi descoberta de fato, já era tarde. Duas cirurgias foram feitas para desobstruir a artéria, mas não deram resultado. Foi então que na terceira operação, o braço esquerdo teve de ser amputado.

Erica diz que aceitou a nova condição, pois não suportava a dor que a trombose causava. Ela é destra e hoje tem tudo adaptado em sua casa. Os objetos agora estão em níveis mais baixos, pois para Erika, o ato de pegar as coisas no alto a desequilibra. ”No começo tudo é difícil, mas agora já faço tudo sozinha, menos faxina que é muito pesado”.

Joelho computadorizado — A tecnologia utilizada nas próteses vem crescendo. Alguns países como Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos estão avançados nessa área. Hoje, a prótese mais sofisticada para membro inferior possui um joelho computadorizado, com um microprocessador. O joelho é programado para exercer várias atividades como caminhar, correr, subir e descer rampas, descer ou subir escadas, regular velocidades etc. O técnico responsável pela prótese vai programá-la para que esta se adeque melhor ao paciente.

Quando um movimento é feito, como o de subir um degrau, o paciente para e pensa no que vai fazer. Com o joelho computadorizado isso não é preciso. Sensores localizados no calcanhar detectam o tipo de solo em que se está pisando e transmitem sinais para que o joelho atue por conta própria. Apesar de ser o que há de mais moderno na área, vale lembrar que independentemente da prótese utilizada, o coto deve estar pronto e apto a recebê-la.

Já com os outros modelos de joelho — o tipo hidráulico, que funciona com óleo; o pneumáutico, com sistema de ar, e o mecânico, com molas —, o paciente pensa no movimento que será executado. Mas com o tempo o deslocamento se torna mais automático.
Em termos de prótese superior a prótese mioelétrica é uma das mais sofisticadas. O paciente não precisa usar sua força física para movimentá-la. Tudo isso é feito com a ajuda da energia elétrica.

Onde adquirir as próteses  A Casa da Esperança, em Santos, é um centro de reabilitação para deficientes físicos e mentais que existe desde 1957. A entidade mantém um laboratório de prótese e órtese que atende a maioria dos casos na Baixada Santista.

Milton Braz da Silva é o encarregado da oficina ortopédica que conta com uma equipe de oito funcionários. “O nosso preço aqui é menor do que na maioria dos lugares, pelo fato de aqui ser uma entidade que não visa o lucro”, explica.

Silva explica que a escolha de utilizar uma prótese revestida ou não fica a critério do paciente. Os jovens preferem, normalmente, as próteses sem revestimento, já os idosos preferem o revestimento na parte tubular. Mas independentemente da escolha o preço é o mesmo. O modelo mais barato fornecido pelo centro custa em torno de R$ 2 mil. Já a mais cara pode chegar a R$ 75 mil. No entanto, próteses com esse valor não são vendidas porque os pacientes não têm um poder aquisitivo tão elevado. Em média, o preço das próteses vendidas fica entre R$ 2 mil e R$ 8 mil.

Isso não quer dizer que uma prótese tem de ser cara para funcionar. Elas devem atender às necessidades específicas de cada paciente, o fato de ser caro não significa ser melhor para aquela pessoa. 

Depois que o paciente está preparado e a prótese encontra-se confeccionada, ocorre o processo de habilitação dos usuários. Todo o trabalho pode durar de seis meses a um ano. Isso porque aprender a andar com a prótese é uma parceria entre o fisioterapeuta e o protético que pode fazer ajustes se for necessário. Não é do dia para a noite que isso acontece.

Quanto aos calçados, se o paciente calça 40, o número do pé artificial também será número 40, sendo possível usar os mesmos calçados antes da amputação. As mulheres também têm a opção de utilizar um pé próprio para salto alto, é só apertar um botão lateral que regula a altura de zero a seis centímetros.

Ouvindo o escuro

Quando a visão lhe falta, reaprender a enxergar com os outros sentidos é mais fácil se você tem força de vontade

Por Luciano Agemiro


Luis Simonal do Nascimento se tornou cego aos 18 anos por causa de uma doença rara chamada Drusas de Papila. O jovem esportista que sonhava em conhecer o país viajando pelas estradas interrompeu ainda cedo os seus planos. Nascimento teve que se adaptar à sua nova condição e realizar suas atividades. Com 36 anos, o Flamenguista conta um pouco sobre o momento tão marcante, o dia em que perdeu a visão.

Ouça o podcast abaixo:

"Eu vou conseguir"

Quando a vida normal é interrompida, a força de vontade e a determinação fazem toda a diferença

Por Igor Augusto


Edson Gamito (foto acima) vem pela rua, passos quase rápidos, à frente da mulher e do filho de 4 anos. São perceptíveis a concentração e o esforço para carregar em ambas as mãos duas sacolas grandes. Cada uma deve pesar uns seis quilos. É sábado e a família acaba de sair de um mercado. De três anos para cá, nem sempre essa cena rotineira foi possível.

Gamito sofreu um acidente vascular cerebral em 2008. Era mais um dia de verão, em fevereiro. Estava na praia com a família. Lá, nada de cerveja ou alimentos gordurosos. Só bebeu água. Por volta do meio-dia já estavam de volta, pois um vizinho iria fazer um churrasco. Valéria estava na cozinha e Gamito foi tomar banho. Depois de alguns minutos de ducha, uma impressão diferente. As imagens ficaram estranhamente desfocadas, não é possível ver os objetos no banheiro, apenas a cor branca dos azulejos. 

— Valéria! — gritou Edson. — Vale... — Dessa vez, a voz não saiu, era como se a garganta estivesse fechada.

A mulher veio correndo. Com dificuldade, retirou o corpo do marido, maior que o seu, do box. Levou-o levou para a sala. Gamito teve náusea, vomitou bile. Valéria ligou para a ambulância e pouco depois já estavam a caminho do Pronto-Socorro do Macuco. Na sala de espera, de novo o mal-estar, a ânsia.

— Não vai vomitar aqui, não — gritou uma atendente. — Esse é mais um drogado! — reclamou.

A funcionária do PS estava redondamente enganada. Gamito estava sob o efeito de convulsões, o acidente cerebral que mudou a sua vida.

O AVC interrompe o fluxo sanguíneo do cérebro e deixa sequelas físicas. Dependendo do caso, pode levar à morte. Edson Gamito está agora na sala de sua casa. O sinal das sequelas do derrame está na voz, um pouco enrolada. A força no braço esquerdo também não é a mesma, assim como os passos têm um ritmo mais lento, um pouco desentrosados.


Com 47 anos e hoje aposentado, Gamito teve de esquecer o futebol. Torcedor do Santos (foto acima), acompanha as partidas do time na TV, escuta programas esportivos no rádio e navega na internet. Começou a jogar com garotos mais velhos, na rua. Aos 19 anos, estava no Reunidos Praia Clube. Valia de tudo, várzea ou praia. O que importava era a magia da bola. Atacante leve e rápido, 60 quilos no máximo, toques de primeira. Gamito era o artilheiro da equipe.

— O futebol é a minha paixão — diz. — Eu jogava bem...

Até o acidente levava uma vida atlética. Não fumava, corria do Canal 6 ao 3, em Santos, com frequência — cerca de cinco quilômetros ida e volta —, sem contar as partidas esporádicas. Cuidava-se. Não ingeria comida gordurosa.

— Também não fumava, não gosto nem do cheiro do cigarro...
— Bebia?
— Só cerveja de vez em quando.

­O que levou então ao AVC, geralmente caracterizado pela vida sedentária, com acúmulo de gordura nos vasos sanguíneos? Gamito acha que pode ter sido a pressão do trabalho. Ocupava o cargo de supervisor em uma exportadora a granel, na qual ingressou aos 21 anos. A empresa não estava bem financeiramente e chegou a demitir 30 funcionários. Ficou apreensivo. No grupo havia gente dedicada. Se a política era a da demissão, era candidato potencial ao olho da rua. Havia a dívida do apartamento financiado, que levaria no mínimo mais cinco anos para ser saldada. Para não correr o risco de ser demitido, começou a trabalhar mais e mais:

— Passei a pensar só em trabalho, trabalho e trabalho. Fiquei preocupado, tenso com uma possível dispensa. Na minha avaliação, foi esse estresse que me levou ao AVC.

Gamito dá também as respostas que obteve dos médicos. Uma falha genética, que se refletia em dano em uma artéria, teria sido a responsável pelo derrame.

— Segundo os médicos, poderia ter ocorrido quando eu estava com 18 anos ou até com 80 — explica.

Se está casado com Valéria foi por causa da empresa. A primeira troca de olhares foi há dez anos. Ela era contratada temporária. Uma amiga dela até tentou evitar que os dois ficassem juntos. Dizia que Gamito já tinha três filhos, era separado, enfim, seria uma barca furada. Valéria tentou evitar o contato, mas não resistiu.

— Um dia chamei-a para sair, mas ela recusou. Saiu andando, aí eu pensei: “Se a ela olhar para trás vamos ficar juntos”. Foi quando Valéria virou o rosto.

Apesar do acidente, Gamito tenta levar uma vida independente. Dirige e cozinha. A família vai em direção ao Honda Fit prata. O veículo foi adquirido após o AVC. Apesar do símbolo de deficiente na frente do automóvel, ninguém diz que dentro do veículo há uma vítima de acidente cerebral. Ele põe a chave na ignição. No molho, uma moeda de R$ 1 com um furo, para que possa ser carregada junto com a chave.

A partida foi dada, as manobras são precisas. Na rua, o modo como Gamito dirige deveria ser adotada por todos os motoristas. Velocidade controlada, setas dadas no momento correto, a sinalização obedecida. Foram dois anos desde o acidente para voltar ao volante. Na primeira vez que o conduziu o carro, estava acompanhado da mulher. Em dezembro de 2010, Valéria caiu enquanto corria, fraturou a rótula e ficou sem andar e dirigir. Foi aí que a cozinha foi assumida pelo marido, que hoje faz almoço para o filho durante a semana. Agora que a mulher está parcialmente recuperada, os dois cozinham juntos e se dão bem na cozinha.

Valéria corta umas batatas. No fogão, ele cuida do arroz, joga uns hambúrgueres na frigideira.
— Shshshshhshshshshshshshshshshshsh — fez o hambúrguer congelado ao encostar no óleo quente.

O barulho do hambúrguer assustou Gamito, o que o fez esbarrar na tampa de uma panela, que caiu no chão. Mas tudo bem. Ao fim de 15 minutos, o almoço estava pronto, com direito até a salada de tomate e beterraba para o repórter.

A refeição foi preparada logo depois de um encontro no Centro Espírita Aprendiz do Evangelho. Na verdade, a reunião começou com as crianças, que aprendem um pouco sobre espiritualidade. Os pais aproveitam e fazem o Círculo dos Pais, em que também conversam sobre o mesmo tema. O grupo de 13 pessoas dialogou recentemente sobre autoestima e temas relacionados. Uma das frases que sintetizou o encontro pôde ser extraída de uma mensagem passada aos presentes: “A aceitação de nós mesmos e de nossas condições evolutivas é o passo mais eficiente em direção à melhora”. Além do círculo, Gamito participa atualmente da doutrina espiritual, toda às quintas-feiras. São ensinamentos espirituais que contribuíram, segundo ele, para a sua evolução.

— A tua mudança assusta todo mundo. Parentes, familiares — diz Gamito, que hoje se considera mais sereno.

Ele levanta cedo, antes das sete. Depois de preparar o almoço e de outros afazeres, é hora de levar o filho para a escola — os outros três filhos de Gamito têm hoje 18, 16 e 14 anos. São do primeiro casamento, que não deu certo — e de deixar a mulher no trabalho.
Sobre a recuperação, ele costumava dizer ao fisioterapeuta: “Eu vou conseguir, vou conseguir”. Conseguiu.