Quando a vida normal é interrompida, a força de vontade e a determinação fazem toda a diferença
Por Igor Augusto
Edson Gamito (foto acima) vem pela rua, passos quase rápidos, à frente da mulher e do filho de 4 anos. São perceptíveis a concentração e o esforço para carregar em ambas as mãos duas sacolas grandes. Cada uma deve pesar uns seis quilos. É sábado e a família acaba de sair de um mercado. De três anos para cá, nem sempre essa cena rotineira foi possível.
Gamito sofreu um acidente vascular cerebral em 2008. Era mais um dia de verão, em fevereiro. Estava na praia com a família. Lá, nada de cerveja ou alimentos gordurosos. Só bebeu água. Por volta do meio-dia já estavam de volta, pois um vizinho iria fazer um churrasco. Valéria estava na cozinha e Gamito foi tomar banho. Depois de alguns minutos de ducha, uma impressão diferente. As imagens ficaram estranhamente desfocadas, não é possível ver os objetos no banheiro, apenas a cor branca dos azulejos.
— Valéria! — gritou Edson. — Vale... — Dessa vez, a voz não saiu, era como se a garganta estivesse fechada.
A mulher veio correndo. Com dificuldade, retirou o corpo do marido, maior que o seu, do box. Levou-o levou para a sala. Gamito teve náusea, vomitou bile. Valéria ligou para a ambulância e pouco depois já estavam a caminho do Pronto-Socorro do Macuco. Na sala de espera, de novo o mal-estar, a ânsia.
— Não vai vomitar aqui, não — gritou uma atendente. — Esse é mais um drogado! — reclamou.
A funcionária do PS estava redondamente enganada. Gamito estava sob o efeito de convulsões, o acidente cerebral que mudou a sua vida.
O AVC interrompe o fluxo sanguíneo do cérebro e deixa sequelas físicas. Dependendo do caso, pode levar à morte. Edson Gamito está agora na sala de sua casa. O sinal das sequelas do derrame está na voz, um pouco enrolada. A força no braço esquerdo também não é a mesma, assim como os passos têm um ritmo mais lento, um pouco desentrosados.
Com 47 anos e hoje aposentado, Gamito teve de esquecer o futebol. Torcedor do Santos (foto acima), acompanha as partidas do time na TV, escuta programas esportivos no rádio e navega na internet. Começou a jogar com garotos mais velhos, na rua. Aos 19 anos, estava no Reunidos Praia Clube. Valia de tudo, várzea ou praia. O que importava era a magia da bola. Atacante leve e rápido, 60 quilos no máximo, toques de primeira. Gamito era o artilheiro da equipe.
— O futebol é a minha paixão — diz. — Eu jogava bem...
Até o acidente levava uma vida atlética. Não fumava, corria do Canal 6 ao 3, em Santos, com frequência — cerca de cinco quilômetros ida e volta —, sem contar as partidas esporádicas. Cuidava-se. Não ingeria comida gordurosa.
— Também não fumava, não gosto nem do cheiro do cigarro...
— Bebia?
— Só cerveja de vez em quando.
O que levou então ao AVC, geralmente caracterizado pela vida sedentária, com acúmulo de gordura nos vasos sanguíneos? Gamito acha que pode ter sido a pressão do trabalho. Ocupava o cargo de supervisor em uma exportadora a granel, na qual ingressou aos 21 anos. A empresa não estava bem financeiramente e chegou a demitir 30 funcionários. Ficou apreensivo. No grupo havia gente dedicada. Se a política era a da demissão, era candidato potencial ao olho da rua. Havia a dívida do apartamento financiado, que levaria no mínimo mais cinco anos para ser saldada. Para não correr o risco de ser demitido, começou a trabalhar mais e mais:
— Passei a pensar só em trabalho, trabalho e trabalho. Fiquei preocupado, tenso com uma possível dispensa. Na minha avaliação, foi esse estresse que me levou ao AVC.
Gamito dá também as respostas que obteve dos médicos. Uma falha genética, que se refletia em dano em uma artéria, teria sido a responsável pelo derrame.
— Segundo os médicos, poderia ter ocorrido quando eu estava com 18 anos ou até com 80 — explica.
Se está casado com Valéria foi por causa da empresa. A primeira troca de olhares foi há dez anos. Ela era contratada temporária. Uma amiga dela até tentou evitar que os dois ficassem juntos. Dizia que Gamito já tinha três filhos, era separado, enfim, seria uma barca furada. Valéria tentou evitar o contato, mas não resistiu.
— Um dia chamei-a para sair, mas ela recusou. Saiu andando, aí eu pensei: “Se a ela olhar para trás vamos ficar juntos”. Foi quando Valéria virou o rosto.
Apesar do acidente, Gamito tenta levar uma vida independente. Dirige e cozinha. A família vai em direção ao Honda Fit prata. O veículo foi adquirido após o AVC. Apesar do símbolo de deficiente na frente do automóvel, ninguém diz que dentro do veículo há uma vítima de acidente cerebral. Ele põe a chave na ignição. No molho, uma moeda de R$ 1 com um furo, para que possa ser carregada junto com a chave.
A partida foi dada, as manobras são precisas. Na rua, o modo como Gamito dirige deveria ser adotada por todos os motoristas. Velocidade controlada, setas dadas no momento correto, a sinalização obedecida. Foram dois anos desde o acidente para voltar ao volante. Na primeira vez que o conduziu o carro, estava acompanhado da mulher. Em dezembro de 2010, Valéria caiu enquanto corria, fraturou a rótula e ficou sem andar e dirigir. Foi aí que a cozinha foi assumida pelo marido, que hoje faz almoço para o filho durante a semana. Agora que a mulher está parcialmente recuperada, os dois cozinham juntos e se dão bem na cozinha.
Valéria corta umas batatas. No fogão, ele cuida do arroz, joga uns hambúrgueres na frigideira.
— Shshshshhshshshshshshshshshshshsh — fez o hambúrguer congelado ao encostar no óleo quente.
O barulho do hambúrguer assustou Gamito, o que o fez esbarrar na tampa de uma panela, que caiu no chão. Mas tudo bem. Ao fim de 15 minutos, o almoço estava pronto, com direito até a salada de tomate e beterraba para o repórter.
A refeição foi preparada logo depois de um encontro no Centro Espírita Aprendiz do Evangelho. Na verdade, a reunião começou com as crianças, que aprendem um pouco sobre espiritualidade. Os pais aproveitam e fazem o Círculo dos Pais, em que também conversam sobre o mesmo tema. O grupo de 13 pessoas dialogou recentemente sobre autoestima e temas relacionados. Uma das frases que sintetizou o encontro pôde ser extraída de uma mensagem passada aos presentes: “A aceitação de nós mesmos e de nossas condições evolutivas é o passo mais eficiente em direção à melhora”. Além do círculo, Gamito participa atualmente da doutrina espiritual, toda às quintas-feiras. São ensinamentos espirituais que contribuíram, segundo ele, para a sua evolução.
— A tua mudança assusta todo mundo. Parentes, familiares — diz Gamito, que hoje se considera mais sereno.
Ele levanta cedo, antes das sete. Depois de preparar o almoço e de outros afazeres, é hora de levar o filho para a escola — os outros três filhos de Gamito têm hoje 18, 16 e 14 anos. São do primeiro casamento, que não deu certo — e de deixar a mulher no trabalho.
Sobre a recuperação, ele costumava dizer ao fisioterapeuta: “Eu vou conseguir, vou conseguir”. Conseguiu.
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